“Viagem pelo Fantástico”, de Boris Kossoy, comemora cinco décadas com nova edição
Leila KiyomuraQuando o jovem fotógrafo realizou o sonho de ver suas imagens reunidas em um livro, tinha certeza que o Realismo Fantástico seria uma marca na sua obra. Esgotado há muito tempo, Viagem pelo Fantástico volta a peregrinar sob a luz do preto e branco. Cinquenta anos depois, o livro de Boris Kossoy, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP, reaparece acompanhado de um segundo volume, este constituído por textos críticos que contextualizam a obra no momento de sua publicação, em 1971. Os artigos são assinados por Horácio Fernandez, Helouise Costa, Cristianne Rodrigues, Ricardo Mendes, Diógenes Moura, Ralph Willians, Acir D. Silva e Ana Paula Vitório.
O professor explica que o livro coincide com a abertura de um caminho criativo, um ponto de partida para uma longa jornada. “Nenhuma das imagens ou histórias sofreu alterações ou mudanças nesta edição”, destaca. “O livro continua incólume, tal como sempre foi desde seu nascimento. O fato é que essa viagem pelo fantástico me surpreende por ser exatamente assim como é.”
“Sempre entendi a fotografia como produto social e cultural que resulta de um processo criativo ou, mais especificamente, um registro a partir do processo de criação/construção do seu autor, um registro expressivo.”
Boris Kossoy conduz o leitor para uma grande viagem. Segundo o professor, “a viagem do livro, planejada por sequências de imagens encadeadas formando pequenas histórias, estabelecia uma proposta inovadora para a época em vários sentidos. Sempre entendi a fotografia como produto social e cultural que resulta de um processo criativo ou, mais especificamente, um registro a partir do processo de criação/construção do seu autor, um registro expressivo, pois. Um meio que assistiu, em diferentes momentos de sua história – lembramos aqui o período vanguardista entre-guerras – experimentações estéticas paralelas as de seu vínculo tradicional com a experiência do real.” O professor de Fotografia da ECA conta que no momento em que o livro foi lançado, assim como hoje, poucos questionavam o sistema de representação visual sobre o qual se fundamenta a fotografia. “Da mesma forma, poucos questionam que esse sistema foi projetado para produzir no observador a ‘ilusão de realidade’ a partir de fragmentos de temas selecionados, recortados, cenas que uma vez registradas encantam os observadores pelas elaborações que fazem a partir da realidade das imagens, ou seja, a realidade da representação.” Kossoy destaca: “É essa a ficção original da qual decorre a ficção documental, entendida como ‘espelho do real’, um paradoxo. Foi através da práxis da criação de imagens que essas questões passaram a me inquietar. Tais constatações teóricas se tornaram claras para mim e as formularia a partir da década de 80 em diante”.
“Hoje, apesar das mídias digitais, da inteligência artificial desenvolvida para o controle das massas, dos clones que se aperfeiçoam constantemente e do império de Narciso em que vivemos neste planeta em rede, a viagem continua…”
Na avaliação de Kossoy, era importante questionar os fundamentos da ideologia da “fotografia-verdade”, centrada na mímese de cunho positivista e fortemente atada aos grilhões documentais de exatidão científica, uma transparência utópica entre o fato e a representação, espécie de compromisso que, desde sempre, fora atribuído à fotografia. Para o jovem fotógrafo, “pôr em xeque esses fundamentos era preciso e os personagens e cenários das minhas histórias se restavam para tanto. Imaginei referentes improváveis, porém possíveis, e por vezes antagônicos em relação aos cenários considerados normais, ocorrendo em situações inusitadas, criações do imaginário, desvinculadas da expectativa científica imposta à imagem fotográfica desde sempre. Esse era o debate que o livro suscitava à época em meio a pequenos grupos interessados. E o tema não perdeu sua atualidade”. Viagem pelo Fantástico segue o seu caminho independente. “Hoje, apesar das mídias digitais, da inteligência artificial desenvolvida para o controle das massas, dos clones que se aperfeiçoam constantemente e do império de Narciso em que vivemos neste planeta em rede, a viagem continua, prossegue entre realidades múltiplas e ficções, como sempre. Continuam também as milhares de obras de inúmeros fotógrafos ao redor do mundo, que deixaram sua marca na história da fotografia. Continuam, por fim, a ser produzidos os bilhões de imagens de tudo – fragmentos passageiros – da memória contemporânea do mundo e da memória individual, e as imagens do nada, inúteis, que se reproduzem assustadoramente. Tanto umas como as outras serão, mais cedo ou mais tarde, descartadas juntamente com os celulares
obsoletos que as geraram. Imagens que tiveram um passado incógnito e um futuro que não aconteceu.”
Estabelecer referências culturais consistentes tem sido o alvo da atuação do professor. “E tais referências foram empreendidas através da pesquisa e da reflexão histórica e teórica, paralelamente a uma carreira dedicada à criação de imagens e à vida acadêmica, privilégio que temos enquanto docentes de disseminar o conhecimento. A produção acadêmica expande e consolida essas referências. Destaco ainda a atividade desenvolvida para além da Universidade, mais próxima à comunidade, junto a diferentes entidades públicas e privadas.” Muitos são os mestres, doutores e fotógrafos que embarcaram com o professor nesta viagem ao longo do tempo. Kossoy complementa: “Exibir e desarticular as construções ideológicas dissimuladas na trama das representações fotográficas, tanto as do passado como as de hoje, têm sido um dos principais eixos teóricos dos nossos trabalhos junto aos alunos e orientandos. Contribuir, enfim, para a consolidação de uma cultura visual no Brasil é a premissa que nos guia”.
KIYOMURA, Leila. “Viagem pelo Fantástico”, de Boris Kossoy, comemora cinco décadas com nova edição. Jornal da USP, 2021. Disponível em: <https://jornal.usp.br/cultura/viagem-pelo-fantastico-de-boris-kossoy-comemora-cinco-decadas-com-nova-edicao/>. Acesso em: 20 de jan. de 2023.