Textos e fotos mostram o desassossego de Boris Kossoy

Textos e fotos mostram o desassossego de Boris Kossoy

Nem todo bom fotógrafo se torna um estudioso em fotografia e nem todo estudioso se destaca com seu próprio trabalho fotográfico. Boris Kossoy é um caso à parte, pois as duas áreas combinaram com perfeição: é um fotógrafo talentoso e um pesquisador respeitadíssimo no Brasil e no exterior. Depois de décadas publicando livros sobre a história da fotografia, lança seu segundo livro como fotógrafo, que reúne imagens de quase 40 anos. 

Kossoy começou a “olhar de soslaio” para a fotografia quando ainda era um jovem arquiteto, embora tanto a fotografia quanto o desenho já se alinhassem desde a adolescência.

Uma das imagens de Boris Kossoy – Fotógrafo (Cosac Naify, 2010) foi feita em 1955, quando tinha 14 anos, época em que morava no centro de São Paulo, no bairro dos Campos Elíseos, ainda hoje um lugar que reúne uma quantidade considerável de casarões centenários, os chamados “palacetes”.

Nos anos 1950, a ligação entre os Campos Elíseos e o Colégio Presbiteriano Mackenzie (onde Kossoy cursou do fundamental à universidade) era feita por um longo percurso de bondade, que passava pela então grande Avenida Angélica. Juntamente ao centro, onde estavam os cinemas Metro e Marabá, essas eram as áreas que faziam parte do raio do olhar do fotógrafo.

O próprio Kossoy recorda que “São Paulo era muito caipira” e os terrenos desertos dos caminhos começaram a formar cenários em suas primeiras composições. Lembranças também de seus primeiros anos de vida, em um sítio entre a Vila Galvão e Picanço, em Guarulhos, Grande São Paulo, onde seus pais se estabeleceram. O pai, oriundo da Ucrânia, e a mãe, da Polônia ou da Alemanha (“Há uma controvérsia”, diz Kossoy). Casaram-se no Brasil em 1940. Boris nasceu no ano seguinte. 

Apesar de ter sido influenciado pelo entorno da cidade, os fundamentos da imagem criada por Kossoy ancoram-se mesmo no perfil intelectual. Leitor contumaz desde a infância, foi com os livros de Edgar Alan Poe (1809-1894), Fiódor Dostoiévski (1821-1881), Arthur Conan Doyle (1859-1930) e, já na adolescência, Sigmund Freud (1856-1939), Karl Marx (1818-1883) e Julio Cortázar (1914-1984), além de uma predileção pelas narrativas de HQs, que Kossoy formou um estilo com inquietação e diversidade, típicas do conhecimento literário. 

O desequilíbrio, o encontro e o desencontro, transformaram-se em motivação quando ele percebeu que a fotografia não era um mero registro, muito menos se tratava da verdade, e sim de uma “interpretação de uma realidade”. A questão do arremate técnico, mais apurado em sua questão gráfica, também o impulsionava para longe dos “modernos” de então, e a incompatibilidade com os fotoclubes se fez presente. “Era difícil de explicar, por exemplo, que uma tinta preta podia conter azul”, lembra Kossoy, ao analisar que muito da produção modernista era algo superficial e modista. 

Esta diferença de aprumo tanto no conceito quanto na expressão é patente quando examinamos o primeiro livro como fotógrafo, Viagem pelo Fantástico (Editora Kosmos, 1971). Primeiro porque publicar fotos naquela época era algo inusitado. Obter pretos profundos exigia uma expertise em impressão, e misturar papéis diferenciados antecipava um design de vanguarda. Sem falar no conteúdo, uma sucessão de contos e narrativas nada comuns, oriundas do realismo mágico.

Até mesmo as guardas de Viagem pelo Fantástico eram arrojadas para época, pois criavam uma espécie de distorção ótica. Ao propor um jogo intelectual nos pequenos contos com quatro ou cinco imagens, a transgressão de Kossoy é expressa e, de certa forma, incompreendida pelo pensamento corrente da época, o que confirma sua perene capacidade de instigar quase 40 anos depois de publicado. 

Trata-se de um instante incomum, ou como ele diz, “aquele momento que desequilibra”. Para sermos mais filosóficos, é o tal de “Punctum”, que Roland Barthes (1915-1980) viveu a martelar.

Como pensador, Boris Kossoy diz crer que seu trabalho seja o de desmontar a imagem fotográfica, seus signos, por meio da compreensão da natureza e do sistema de representação, dos mecanismos que regem a produção e recepção das imagens e, finalmente, das tramas que as envolvem, que compõem o seu tecido, impregnado de realidade e ficções. 

Vida acadêmica

Para quem acha que a teoria da fotografia não tem leitores, um de seus títulos teóricos, Realidades e Ficções na Trama Fotográfica (Ateliê Editorial, 2002), já está na quarta edição. O livro faz parte de uma trilogia junto aos Os Tempos da Fotografia, o Efêmero e o Perpétuo (Ateliê Editorial, 2007) e Fotografia e História (Ateliê Editorial, 2001), obras fundamentais em qualquer biblioteca sobre fotografia que se preze.

Kossoy acredita que a boa fotografia é resultado de um pensamento composto por substratos políticos e filosóficos, e critica aquele oportunismo de seguir a moda. “Muito disso se dá por uma certa ignorância da história da fotografia. Vemos fotógrafos querendo reinventar a roda”, afirma ele.

Mas não pensem que a “angústia da influência”, aquele momento celebrizado pelo crítico inglês Harold Bloom, não aflige um criador da magnitude de Kossoy. Este é um embate constante a que se propõe. Aliás, como todo pensador, a autocrítica é inerente à sua obra. “Tenho sempre aquela angústia de querer transpor a ideia da desmaterialização”. Ele cita algumas de suas referências: a famosa foto do arlequim (Surpresa na estrada, da série Viagem pelo Fantástico, 1970) flerta com a Pop Art e com as HQs que, na época, faziam a cabeça do autor. 

“As imagens que usavam retículas me encantavam”, conta Kossoy, fazendo ligação com Robert Rauschenberg (1925-2008) e Andy Warhol (1928-1987).

Poucos compreenderam essa linguagem à época, e um deles foi Pietro Maria Bardi (1900-1999), diretor do Museu de Arte de São Paulo (Masp) na ocasião. Bardi reconhecia na obra do fotógrafo um estado de espírito particular, em busca de inquietações. 

É este permanente desassossego que faz a ponte entre o produtor de imagens e aquele que, para suas análises, as descortina em mínimas tramas. Mas a capacidade de fazer imagens o qualifica e o diferencia dos demais, pois conhece em profundidade o fazer fotográfico, o diálogo que se estabelece entre este perfil e seu objeto de estudo. 

O posicionamento intelectual também cedeu espaço ao pensamento político com a série Cartões Antipostais, no qual o fotógrafo retrata as periferias das cidades e permanentes mazelas. Um antagonismo explícito ao “Brasil, ame-o ou deixe-o”, mote da ditadura na década de 1970, que cultuava belas imagens ufanistas, futebol e carnaval. A ideia de Kossoy foi mostrar o cotidiano abandonado de cidades como Salvador, Recife e Manaus. Com a capital federal, Brasília, a referência é mais aguda: o fotógrafo distorceu com uma grande angular a estátua da Justiça e, por meio de filtros, escureceu o céu. 

Muitos dos conceitos embutidos nas fotos fazem parte da percepção da sociedade pelo pensador Kossoy. Em 40 anos de carreira, as alegorias surgem em contraponto à própria existência. Os parques, constantes nas suas imagens, são referência à sua infância, no sítio de Guarulhos, ou às visitas ao Jardim do Parque da Luz, contrastes e semelhanças que ainda hoje ocorrem em sua sintaxe. Ele pontua de maneira competente estas referências.

Sem limites

Na busca de um maior aprendizado, Kossoy passou um ano em Nova York, em contato com a American Society of Magazine Photographers (ASMP), hoje American Society of Media Photographers. Deste período, surge a série Cenas de New York. Ele conta que, ao sair de um país fechado pela ditadura, ficou impressionado com a liberdade das manifestações norte-americanas. “As pessoas saíam às ruas para manifestar-se contra a Guerra do Vietnã e, no Brasil, não podíamos abrir a boca”, recorda Kossoy.

Em 1971, as imagens feitas pelo brasileiro foram destaque na revista Infinity, publicada pela ASMP, que também expôs o trabalho de Kossoy na Universidade de Nova York. Em 1972, a revista Camera 35 também mostrou o portfólio do fotógrafo. É nos Estados Unidos que ele começa a perceber a falta de importância que se dava, no Brasil, à história da fotografia.

“Encontrava um texto ou outro, coisas do Gilberto Ferrez (1908-2000), mas muita pouca coisa”, conta. 

Ao buscar um passado histórico, com referências sobre a fotografia brasileira, Kossoy percebeu que, quanto mais se aprofundava, mais notava que era fundamental a experiência como fotógrafo para o entendimento dessa história. 

Reside aí um dos diferenciais de sua vasta obra teórica. Quem escreve, entende (e muito) do fazer fotográfico. A experiência pessoal é fundamental. A argumentação surge de uma experiência real, vivida e não apenas imaginada.

Entre seus vários livros importantes estão alguns com enorme contribuição até mesmo para o entendimento histórico da nossa sociedade. É o caso de Origens e Expansão da Fotografia no Brasil no Século XIX (Funarte, 1980), Álbum de Photographias de São Paulo 1892 (Kosmos, 1984), São Paulo 1900, Fotografias de Guilherme Gaensly (Kosmos, 1988), O Olhar Europeu: O Negro na Iconografia Brasileira do Século XIX (Edusp, 2002), A Imprensa Confiscada pelo DEOPS, 1924-1954 (Ateliê Editorial e IO, 2003) e Hercule Florence, a Descoberta Isolada da Fotografia no Brasil (Edusp 2006), este último também publicado em espanhol. 

Kossoy avalia que pode não ter um grande público leitor, mas tem uma audiência fiel, que se interessa em discutir o assunto, faz perguntas e troca e-mails informativos. É um público que é impulsionado a ler. No entanto, crê que existem algumas pessoas que jamais irão ler algo. Acredita que não é apenas um problema brasileiro, mas sim internacional. Pode falar com folga, pois entre outras funções, é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, além de membro do Conselho Consultivo da Coleção Pirelli-MASP de Fotografia. 

Dinâmica cultural

Formado numa geração autodidata, que aprendeu os requisitos mais rudimentares da fotografia, Kossoy acompanha de perto as mudanças tecnológicas. Ele acredita que existe um vazio cultural estético, e até mesmo emocional, nas mudanças das mídias, do filme para o digital, e resume na alegoria: “A gente não pode saltar da árvore direto para o computador. Temos que descer devagar, com cuidado e, aí sim, chegar nele”.

O fotógrafo e pensador afirma que “havia uma intimidade com a gênese da imagem que era indispensável e insubstituível”. Com isto em mente, ele se empenha na construção de uma cultura fotográfica que seja mais abrangente. 

“É preciso imaginar que, com a fotografia, construímos uma segunda vida. Neste momento, o fato passa distante da realidade explícita. Vivemos um resultado de mentiras que, muitas vezes, confunde realidade com verdade”, finaliza.

ESTEVES, Juan. Textos e fotos mostram o desassossego de Boris Kossoy. Revista Fotografe Melhor, 2010.

 



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