O Brasil no espelho

O Brasil no espelho

Fábio Altman

Foram 20 anos de trabalho. O resultado da minuciosa garimpagem de Boris Kossoy, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, é o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro, editado pelo Instituto Moreira Salles. É um compêndio de 900 verbetes sobre a origem da atividade no país, de 1833 a 1910. Reúne fotógrafos, casas que revendiam retratos e equipamentos e os chamados “salões de pose”, com teto de vidro para iluminação natural. Vai de Aboim (Rua das Flores, 45, Curitiba, 1868/1873, “photographia – retratos de vivos e mortos, photographados a oleo e aquarella”) a Zuza, Ferreira (Rua 15 de Novembro, Indaiá, MG, 1901, “photographias a domicilio”).

O marco inicial é 1833 porque foi em janeiro daquele ano que Antoine Hercule Romuald Florence, um francês de Nice radicado em Campinas, realizou as primeiras experiências fotográficas nas Américas. Há evidências de que, sete anos antes do anúncio oficial da descoberta de Louis Daguerre, em Paris, Florence já “imprimia” em papéis sensibilizados com sais de prata e cloreto de ouro, pela ação da luz solar, exemplares de diplomas maçônicos e rótulos para farmácia.

O livro mostra nomes já conhecidos e incensados como Marc Ferrez e Augusto Cesar de Malta Campos, o Malta, mestres da paisagem e da vida urbana do Rio de Janeiro no início do século XX. Mas o que torna o volume uma jóia iconográfica são os anônimos que por ele passeiam. Escreve Kossoy na introdução ao Dicionário: “Foram os pequenos fotógrafos – anônimos, itinerantes, ‘volantes’, ambulantes, vários deles exercendo diferentes ofícios para sobreviver, percorrendo longas distâncias a vapor, de trem ou sobre lombo de animais, viajando de vila em vila pelos mais afastados rincões deste país em busca de clientes – que contribuíram para a fixação da imagem do homem brasileiro”. É a história do cotidiano, contada nos álbuns de família e reveladora dos hábitos dos cidadãos de um país ainda essencialmente rural, às portas da industrialização.

Até 1860, a rigor, a fotografia era recurso destinado a quem tinha bom patrimônio – a alguns poucos era dado o beneplácito de exibir, nos cartões de visita, a marca “SS.MM. Imperiaes“, o aval da corte real dos Orléans e Bragança – porque se vivia o tempo do daguerreótipo, imagem única que não permitia a tiragem de cópias. O nascimento do sistema positivo-negativo e a facilidade das reproduções popularizaram os retratos que construíram o rosto do Brasil na virada dos 1800 para os 1900. Pessoas de poucas posses ou celebridades como Joaquim Nabuco apressavam-se em fingir poses.

“Os fotógrafos, europeus em sua maioria, eram itinerantes”, diz Kossoy. “Ao viajar pelo país, ao penetrar no interior, registravam os indivíduos e os grupos familiares,  montaram um painel aparentemente simples mas de imenso valor histórico.” É esse painel que salta das 408 páginas do Dicionário. Havia, é claro, profissionais que, entusiasmados com a nova tecnologia, divertiam-se e divertiam os outros com os recursos recém-descobertos. Valério Vieira, dono de um estúdio em São Paulo, em 1900, tornara-se popular com suas fotomontagens. Os Trinta Valérios, obra do início do século, é um marco na fotografia brasileira. Vê-se uma pequena orquestra em atividade. Um garçom serve comida aos convivas. Há gente chegando. Um busto está posto em cima do piano. Retratos decoram a parede. Detalhe: todos os 30 personagens são o próprio Valério, daí o título do trabalho que lhe deu a medalha de prata, em 1904, numa das mais respeitadas exposições dos Estados Unidos. O virtuosismo de Valério celebrava a técnica, as imensas possibilidades importadas da Europa. É uma das facetas da listagem organizada por Kossoy. Outro aspecto interessante brota da origem dos pioneiros e do modo como eles apontavam suas lentes.

Na década de 1850-1859, segundo os dados de Kossoy, havia cerca de 90 fotógrafos em atividade no Brasil – desse total, pelo menos 60 eram europeus. Em 1880, apenas na cidade de São Paulo, dos nove profissionais na ativa, só dois eram brasileiros. Predominavam os italianos. O olhar estrangeiro dos retratistas e paisagistas da prata que desembarcaram no Brasil era muito semelhante ao dos pintores europeus de séculos anteriores em busca do país tropical e suas exuberâncias.

O holandês Albert Eckhout, no século XVII, o francês Jean-Baptiste Debret, a partir de 1816 e até 1832, o alemão Johann Moritz Rugendas, de 1822 a 1825, tornaram-se mestres na arte de pintar um país exótico, de belos índios e plantas fabulosas, numa visão européia da colônia de Portugal. Era um Brasil que não existia – um olhar estrangeiro que mostrava aos “civilizados” como viviam os “selvagens” do lado de cá do oceano. Eram imagens idealizadas e etnocêntricas.

Os primeiros fotógrafos vindos da Europa fizeram o mesmo. “Eles reafirmaram a visão exótica do país”, diz Kossoy. “Como ocorrera com as pinturas, depreciavam o nativo.” Com um agravante: supõe-se, desde sempre, que na fotografia é mais difícil manipular a realidade, como se entre o olho mecânico e o objeto fotografado não houvesse o olhar humano. “O exotismo reproduzido nas fotografias era ainda mais diabólico que nas pinturas”, diz Kossoy. “No desenho e na pintura é possível imaginar exageros, situações inexistentes – ao negativo sempre se imaginou colar a expressão da verdade, sem intermediários.”

Os registros catalogados no Dicionário Histórico-Fotográfico demonstram, num extraordinário achado iconográfico, que as lentes também produziram exotismos – e ajudaram, de certa forma, a contar o dia-a-dia de um país inexistente ou ao menos diferente do real. As fotos de José Christiano de Freitas Henriques Júnior, português de nascimento, e de Alberto Henschel, alemão de Berlim, são símbolos desse naturalismo invertido. Christiano Júnior, proprietário de um salão na Rua da Quitanda, no Rio de Janeiro, levava seus personagens para posar num fundo neutro. Produzia, ali, as cartes de visite – assim mesmo, em francês – bem ao gosto da antropologia social e das teses racistas em voga na Europa, segundo nota Kossoy. É de Christiano a “collecção de typos de pretos”, conforme anúncios publicados ao redor de 1860 nos jornais e almanaques. “Eram fotos de um catálogo”, afirma Kossoy. “Mostrava os negros como quem exibia um herbário.” Mesmo as 14 fotos em papel albuminado da grande seca que assolou o Ceará em 1877 e 1878, pretensamente feitas em forma de denúncia, soam falsas. Parecem deslocadas porque o fotógrafo Joaquim Antonio Correia levou os famélicos para o estúdio.

ALTMAN, Fábio. O Brasil no espelho. São Paulo, Época, 14.11.2002

 



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