Cenas da grande cidade em dois atos
Revista Veja SPO álbum de fotografias de São Paulo revela o espetacular crescimento paulistano neste século — e mostra que a cidade não ficou pior.
Você está convidado para uma fascinante viagem pelo tempo. A estação de embarque é a São Paulo do início do século e o ponto de desembarque é a São Paulo de nossos dias. A cidade cresceu. Agigantou-se. São Paulo tinha, em 1900, 240 000 habitantes. Hoje, tem mais de 12 milhões. E são justamente esses 12 milhões de habitantes a mais que fazem a grande diferença entre a cidade de ontem e a de hoje. É ilusória a idéia de que se pode conservar as aparentes delícias de tempos dourados quando se tem um contingente extra tão grande de pessoas. Sobretudo, é ilusório pensar que a cidade tenha mudado para pior. A viagem pelo tempo apresentada por Veja em São Paulo só foi possível graças a pacientes pesquisas feitas pelo historiador Boris Kossoy, um paulistano de 47 anos. Dessas pesquisas resultou o livro São Paulo, 1900, patrocinado pela construtora CBPO e ainda sem data prevista de lançamento.
Claro que o personagem principal do livro é São Paulo, mas há um coadjuvante todo especial: o fotógrafo suíço Guilherme Gaensly (1843-1928). Estabelecido na cidade, Gaensly traçou com sua lente um portentoso perfil de São Paulo da virada do século. É esse perfil que aparece nas páginas do livro de Kossoy. “É claro que a cidade fotografada por Gaensly não tem nada a ver com a metrópole em que vivemos”, diz Kossoy. “Mas não se pode dizer que São Paulo mudou para pior.” Gaensly registrou com suas fotos um momento de particular ebulição na trajetória paulistana. Em apenas catorze anos – de 1886 a 1900 -, o fluxo de imigrantes europeus, sobretudo italianos, fizera a população da cidade saltar de 47 000 habitantes para 240000. A Light, então, acabara de se instalar aqui, os paulistanos começavam a ser apresentados à iluminação elétrica e os bondes deixavam de ser puxados por animais.
“O espírito empreendedor da cidade já estava mais do que visível”, diz Kossoy.
Esse álbum fotográfico é uma homenagem de Veja em São Paulo à grande metrópole na passagem de seu 434º aniversário.
Com seus 2 800 metros de extensão, a Avenida Paulista foi criada, em 1891, para ser o símbolo de uma cidade industrial que lançava seus primeiros desafios ao futuro. Para ela acorreram, senhores de seu tempo, os prósperos capitães da indústria nascente. Gente muito rica, como o importador Siciliano, o cervejeiro Büllow, dono da Antarctica, e, é claro, o conde multiempreendedor Francisco Matarazzo, fez desse espigão plácido e arborizado seu porto seguro. Criou-se um mosaico étnico e arquitetônico, em que cada qual erguia mansões à imagem de sua origem e à semelhança de seus sonhos. A velha Paulista não perdeu sua pujança. Hoje, coração financeiro do país, assiste ao trânsito diário de 700 000 pessoas e 60 000 veículos por suas ruas e calçadas. Vistas do mesmo ângulo (entre as alamedas Campinas e Joaquim Eugênio de Lima), as fotos retratam dois momentos de brilho da tradicionalavenida.
Nesta foto, de 1906, a Rua General Carneiro deixa evidente sua beleza humilde. Era ela que ligava o Pátio do Colégio, coração da velha São Paulo, ao outro lado do Rio Tamanduateí, local onde fábricas pipocavam em bairros nascidos com nomes estranhos como Mooca, Pari ou Brás. Nessa rota, que conduzia ao primeiro embrião do parque industrial da cidade, floresceu uma próspera rede de serviços e um comércio de miudezas. Hoje, a rota e o comércio são os mesmos. Só que embelezados por uma urbanização dos anos 80.
Ao longo dos últimos oitenta anos, as ruas de São Paulo também conheceram várias mudanças para pior. Aquela que foi nos primeiros anos do século a charmosa porta de entrada para o mais refinado corredor do comércio paulistano – a Rua São Bento (vista, nesta foto, a partir do largo homônimo) – perdeu sua identidade e elegância. Dois hotéis disputavam a preferência dos forasteiros. À esquerda o Grande Hotel Paulista, instalado sobre a Pharmácia S. José; à direita, o italianíssimo Hotel do Rebechino. O bonde elétrico, grande novidade desses dias, recortava com humor essa paisagem harmoniosa. As fachadas, desafogadas, alinhavam-se numa sucessão agradável aos olhos. O mesmo cenário, hoje, é o que se pode chamar de neofeio – perspectivas truncadas, materiais pobres nas fachadas, horizontes interrompidos, comércio decadente. O alegre corredor tornou-se claustrofóbico.
Quase noventa anos atrás, a célebre e pulsante Avenida São João, imortalizada por Caetano em sua canção Sampa, já abrigava um símbolo autenticamente paulistano: na extremidade direita da foto tirada pode-se ver a palavra chops, verdadeiro emblema do linguajar paulista. Hoje, o olhar se fixa em dois marcos distintos trazidos pela industrialização – o edifício Martinelli, clássico da arquitetura dos anos 20, e o prédio do Banespa. Um detalhe dos tempos de antanho: o gradil à frente do bonde esquerdo visava impedir que pessoas se suicidassem atirando-se sob suas rodas.
Talvez para a surpresa dos corações ecológicos, várias ilhas verdes resistiram aos passos do desenvolvimento. O reservatório de água da Cantareira é uma delas, como se vê nessas duas imagens que têm noventa anos de história da cidade a separá-las. Nos dois primeiros anos do século XX, essa diminuta lagoa supria as necessidades de água e esgoto de toda São Paulo. Hoje não conseguiria abastecer nem mesmo as belas residências cercadas de verde erguidas ao seu redor.
Eis aqui uma excelente prova de que o progresso, mesmo que a passos largos, pode conviver em perfeita harmonia com o passado. A Quinze de Novembro foi a mais importante via de São Paulo. Ali estavam os maiores bancos, as mais elegantes lojas de moda, os melhores cafés e restaurantes.
Nela se situava, também, o estúdio do fotógrafo Guilherme Gaensly, de cujo trabalho nasceu o livro de Boris Kossoy. O destaque, na foto de 1902, é o pequeno jornaleiro no meio da rua – um dos chamados bambini, quase todos garotos italianos, figuras marcantes na São Paulo do início do século. Hoje, vista do mesmo ângulo, a rua ainda ostenta um arco (2º casarão à esquerda) de glorioso passado.
Na São Paulo do começo do século, um punhado de moradores de casarões parecia ter a cidade a seus pés. A vista ao alcance dos olhos desses poucos felizardos era algo interminável. Hoje, com a cidade verticalizada, o horizonte diminuiu sensivelmente. Mas, em compensação, agora são milhares os habitantes que desfrutam um pedaço da panorâmica. A foto acima foi tirada, ao que tudo indica, do prédio do colégio Mackenzie, entre os anos de 1905 e 1906. O panorama que se descortina, a partir dali, é o do bairro de Santa Cecília. Sinal dos tempos, o prédio do Mackenzie, o maior da região, à época, hoje é um dos mais baixos.
Os saudosistas poderão suspirar ao ver que, no começo do século, barquinhos sulcavam as águas límpidas do Tietê. Nadava-se no rio. Nessa foto, datada de 1905, já existia o Clube de Regatas São Paulo, um dos primeiros centros esportivos da capital. E, na outra margem, funcionava, como hoje, o Espéria, fundado pela colônia italiana. Os sócios dos dois clubes se visitavam dando poucas e vigorosas braçadas no Tietê. Hoje, o curso do rio está retificado e em suas águas só convivem poluentes. Em compensação, pelas marginais que ladeiam o Tietê e são essenciais para a movimentação na cidade, o paulistano pode visitar amigos bem mais distantes.
Foi nos últimos anos do século passado que surgiu a Estação da Luz, erigida numa área de 7 520 metros quadrados, em estilo vitoriano, réplica da estação de Sidney, na Austrália. Com a instalação de fábricas ao longo da estrada de ferro, brotaram bairros operários, como o Bom Retiro, um reduto de imigrantes judeus e italianos. Era a época dos tílburis aguardando a chegada dos trens. Essa foto, tirada provavelmente no ano de 1906, a partir do Liceu de Artes e Ofícios, prova que nela nada foi alterado até hoje. Saíram de cena os tílburis, entraram os automóveis, mas a estação permaneceu a mesma. Providencial preservação do passado? Não. Reflexo da estagnação do sistema ferroviário em São Paulo, que não acompanhou a fulgurante maré renovadora que envolveu a cidade.
São Paulo é de tudo um pouco. Mas é, antes de mais nada, seu próprio povo – sejam os atuais 12 milhões de habitantes, seja toda sorte de gente que, ao longo dos 86 anos que separam as duas fotos, forjou a matéria-prima essencial dessa incansável cidade. Os efeitos do desenvolvimento sobre São Paulo podem ser medidos, com uma graça especial, na Rua São Bento. No começo do século, percorrida por bondes durante o dia e iluminada por lampiões à gás durante a noite, ela era considerada a mais agitada das ruas do centro. Hoje, prossegue sendo uma das vias mais palmilhadas pela imensa nação paulistana.
O caçador de fotógrafos
Kossoy: reconstruindo a história de São Paulo com fotografias
São Paulo e fotografia são duas das maiores paixões do historiador paulistano Boris Kossoy, professor de pós-graduação da USP e morador bairro do Brooklin. Aos 47 anos, ele tem o hábito de sair pela cidade com sua velha Pentax à mão para fazer fotos aqui e ali. Apesar de ser um competente fotógrafo amador, sua ligação com as imagens tem muito mais a ver com o trabalho dos outros. É que Kossoy, como pesquisador, dedica-se, desde o início da década de 70, ao estudo de tudo o que se refere à história da fotografia no Brasil. Não faltaram nesta sua trajetória fascinantes descobertas. Em 1976, por exemplo, ele constatou que um francês radicado em Campinas, Hercule Florence, utilizara a fotografia antes mesmo que o também francês Louis Daguerre.
Um livro seu, Origens e Expansão da Foto no Brasil, ilustrado com trabalhos de mais de 400 fotógrafos do século, colocou-o face a face com um nome especial. Era Guilherme Gaensly, um suíço que chegou à Bahia ainda criança e lá montou um estúdio fotográfico. Em 1890, com 50 anos, Gaensly resolveu mudar-se para São Paulo. Sorte da cidade, premiada com magníficos ensaios fotográficos que permitem, quase 100 anos depois, uma viagem no tempo. “Olhando as fotos dá para sentir a cidade exatamente como era há 100 anos”, admira-se Kossoy. Apesar de Gaensly ter feito uma vasta produção sobre a cidade, o esforço de Kossoy para reunir o material foi imenso. “Muito se perdeu”, lamenta. O que não se perdeu se espalhou. “Em doze anos, corri todos os jornais da época, varri arquivos históricos daqui, do Rio e da Bahia, farejei coleções particulares e documentos”, diz ele. “Acho que todo este trabalho valeu a pena.” Mais gratificante que tudo, segundo ele, foi o contato com a obra de Gaensly. “Basta uma olhada despretensiosa para perceber que o trabalho dele foi muito melhor do que o de qualquer outro fotógrafo da sua época.”
Reportagem local. Cenas da grande cidade em dois atos. São Paulo, Veja São Paulo, 27/01/1988.